Sobre mulheres e lobos…
Como um grupo feminino de leitura terapêutica criado em Passos está transformando a vida das participantes
Mulheres que apoiam mulheres. Leitoras em busca de autoconhecimento, partilhando entre si as próprias vulnerabilidades e celebrando as fortalezas. Buscando a reconexão com a essência feminina, muitas vezes abafada pela disputa entre os sexos e alimentada por quem tira proveito desta divisão. “Lobas” que reencontram sua natureza selvagem – a essência da alma da mulher, seus instintos mais profundos, como forma de atingir a verdadeira libertação. Liberdade com consciência. Transformação e resgate.
Este é o propósito do grupo de leitura terapêutica criado em Passos pela psicóloga Chênia Maia. Uma vez por semana, durante uma hora e meia, elas se reúnem descalças e sentadas em círculo no consultório para ler e saborear os ensinamentos do livro Mulheres que correm com os lobos. Escrito pela psicanalista junguiana norte-americana Clarissa Pinkola Estés, 79, a obra ressurge com frequência na lista dos mais vendidos e inspirou a criação de grupos de leitura pelo mundo todo. Publicado em 1992, ficou 70 semanas na lista dos mais vendidos do jornal The New York Times. Clarissa reuniu a sabedoria ancestral da tradição oral dos contos de fadas à psicologia analítica do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961).
Em Passos
No auge da pandemia da Covid-19, quando o isolamento social forçou as pessoas a se relacionarem de forma virtual, Chênia começou a participar de um grupo on-line de leitura de Mulheres que correm com os lobos. Ainda na faculdade de Psicologia, chegou a comprar o livro, que achou difícil de ler – além de a obra ser complexa, ela era ainda muito jovem – mas juventude é uma característica que o tempo corrige.
Impactada com a transformação em si mesma no decorrer das leituras terapêuticas, em 2021 Chênia criou o grupo em Passos. Os grupos, na verdade. São quatro, cada um composto por dez a doze mulheres. Um quinto grupo já está a caminho.
Contos
Com mais de 550 páginas, o livro contém 19 capítulos compostos por contos independentes que trazem mitos e histórias de várias culturas desvendando o arquétipo da mulher selvagem que, durante milhares de anos, vem sendo “domesticada”.
A cada trecho, as lobas, como são carinhosamente chamadas as leitoras do grupo terapêutico, discutem o conteúdo e trocam experiências de vida que vêm à memória a partir destas leituras. Um processo que permite a cura de feridas e o acolhimento mútuo.
Incentivadoras
A loba e psicóloga Eliana Formagio é uma das que vivenciam este processo. “Participar do grupo de leitura terapêutica tem sido uma das experiências mais transformadoras da minha vida”, afirma. Ela cita que os capítulos do livro resgatam com profundidade as histórias de vida de cada uma das leituras. Assim, por meio da leitura, é possível revisitar as próprias histórias, a história da ancestralidade feminina, com as suas dores, carências e feridas. “No grupo somos todas acolhidas e acolhedoras. Somos incentivadas e incentivadoras. Somos encorajadas a desatar os nós que aprisionam a nossa essência genuinamente feminina. Criamos no grupo vínculos muito profundos. E isto nos sustenta de tal forma que somos capazes de nos transformar em seres humanamente melhores porque resgatamos a sacralidade do nosso feminino. Eu sinto que, a cada encontro com outras mulheres, me torno um ser humano melhor para mim, para o outro e para o mundo”, afirma Eliana.
Pausa
Envolvida com a rotina intensa de gerenciar uma distribuidora de artigos para festas que ainda comporta uma cafeteria e uma adega, a empresária Mônica Daher conta nos dedos, toda semana, os dias que faltam para reencontrar as lobas. A cada encontro, aproveita para relaxar e, ao mesmo tempo, se fortalecer. “A partilha, o aprendizado umas com as outras, a nossa experiência em grupo é muito positiva. A gente sai restaurada de lá. A confiança que se estabelece nesse grupo, o amor que a gente acaba tomando umas pelas outras – sempre baseado nos ensinamentos – desvenda muito as nossas dúvidas. E nós, mulheres, percebemos o quanto somos parecidas. A gente fica mais feminina e percebe o quanto precisamos desse lado feminino, que é esta parte tão rica, tão nobre da mulher”, diz.
40 anos
O grupo não tem restrição de idade. Mas talvez não seja por acaso que a maioria das lobas tenha rompido os 40 anos. É nesta idade que a ficha cai. A conta chega. Os olhos se inclinam para trás, buscando no caminho percorrido uma revisão da própria trajetória. Em determinado trecho do livro, a autora pondera: “Há uma época da nossa vida, geralmente metade da vida, em que precisamos tomar uma decisão – possivelmente a decisão psíquica mais importante para nossa vida futura – a respeito de nos tornarmos amargas ou não. As mulheres costumam chegar a este estágio pouco antes ou pouco depois dos 40 anos. Elas estão num ponto em que estão “cheias até a raiz dos cabelos”, em que “para elas, chega”, em que “isso foi a gota d´água” em que “estão irritadas a ponto de explodir”. Seus sonhos de quando tinham vinte anos podem estar jogados de qualquer jeito. Pode haver corações partidos, casamentos desfeitos, promessas esquecidas. Qualquer um que vive muito acumula lixo. Não há como evitá-lo. No entanto, se a mulher quiser voltar à sua natureza instintiva em vez de mergulhar numa atitude amarga, ela renascerá, revitalizada.”
Terapeuta e aprendiz
Chênia já leu e releu, revisitou memórias, esmiuçou o livro… e ainda continua aprendendo com a obra e as lobas. “Por mais que eu já tivesse feito na leitura terapêutica, não tinha a noção da profundidade deste livro até a criação dos grupos. As mulheres passam por uma grande transformação. Eu queria poder registrar o antes e o depois destas mulheres. E transformando a vida delas, transformo completamente a minha”, explica.
Homem X Mulher
Chênia destaca que, ao incentivar a emancipação e o afloramento do feminino, o livro não pretende fustigar o confronto com os homens. “Para entrar nesta briga de igualdade com o homem, a mulher precisou adquirir muitas características do masculino. Com isto, ela foi reprimindo muito a sensibilidade, a intuição, a doação, a ciclicidade. A gente é cíclica. A gente é diferente do homem. O homem tem um funcionamento linear. A gente, não. Tem semana em que a gente está melhor. Tem semana que a gente está pior. Depende do nosso ciclo menstrual, dos nossos hormônios, a gente não está sempre igual. Nós temos visão difusa, eles têm visão focal. A gente se complementa”.
E o que os lobos têm a ver com tudo isto?
A esta altura do texto você deve estar se perguntando: “Por que o título do livro é Mulheres que correm com os lobos”? Quem responde é a própria Clarissa, em um trecho da obra: “Os lobos saudáveis e as mulheres saudáveis têm certas características psíquicas em comum: percepção aguçada, espírito brincalhão e uma elevada capacidade de devoção. Os lobos e as mulheres são gregários por natureza, curiosos, dotados de grande resistência e força. São profundamente intuitivos e têm grande preocupação para com seus filhotes, seu parceiro e sua matilha. Têm experiência em se adaptar a circunstâncias em constante mutação. Têm uma determinação feroz e extrema coragem.”
No Dia Internacional da Mulher, as lobas realizaram uma homenagem para Chênia. Confira aqui o vídeo com alguns destes momentos.
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